Qual é o lugar das crianças?

Como a sociedade enxerga (ou deixa de enxergar) as nossas crianças? Neste ensaio, publicado na Revista Ponte (https://www.revistaponte.org/post/qua-lug-crian) conversamos sobre as consequências de uma sociedade distante das crianças e pensamos porque devemos nos reaproximar delas.


Fonte: Wix


A ideia que geralmente a sociedade tem de criança é de um ser frágil, que precisa de cuidado, que precisa sempre de um adulto por perto para orientar e instruir, sejam pais e mães, professoras e professores, mas será que é assim mesmo que funciona? Temos que analisar bem o assunto, que possui algumas arestas nem sempre compreendidas pelas pessoas. Até que ponto as crianças são tão dependentes assim do adulto?


Buscamos discutir aqui o lugar da criança, tendo a certeza que ela é um sujeito de direitos, não mais um adulto em miniatura como outrora (Ariès,1981). Temos percebido que o conceito de criança evoluiu ao longo dos anos, de um sujeito que “viria a ser” algo, se tornaria alguém quando se tornasse adulto, evoluindo para o conceito de criança de direitos na percepção atual.


Se, por um lado, dizer que a criança era um adulto em miniatura nos agride imensamente, sobretudo considerando a sua invisibilidade e negação na sociedade, por outro lado a criança sujeito de direitos, na nossa atual conjuntura política e social, também nos soa mal. Não porque não consideramos que ela tenha direitos, mas porque muitos direitos estão apenas na legislação (quando estão), e não são cumpridos como deveriam. Se pensarmos nas crianças periféricas, moradoras dos aglomerados, expostas a todo tipo de violência urbana, teremos diante de nós as mesmas circunstâncias das crianças de outras classes sociais? Que direitos essas crianças têm hoje em dia? Estão se alimentando adequadamente? Têm uma moradia decente? Está garantido o seu direito à saúde? Podem estudar tranquilamente sem se preocuparem em trabalhar para ajudar em casa? Isso sem falar no direito à cultura, aos meios de comunicação e informação, ao direito de ir e vir, de viver em sociedade, de ter a proteção da família e tantos outros.


O que vemos a todo instante nas mídias sociais é o reinado de todo tipo de violência, a qual muitas vezes tem início dentro da própria casa, que deveria ser o local dos cuidados e da proteção. A lei não é cumprida e acabamos assistindo a tudo pelos noticiários da televisão, indignados, mas passivos e de braços cruzados. Muitas vezes queremos achar um culpado ali naquele meio familiar e perdemos as noções de que o problema é bem maior e de que, por isso, precisa ser discutido no campo das políticas públicas que precisam enxergar as nossas crianças como sujeitos de direito de fato.


Melhorias para as crianças não é e nunca implicaram gastos, mas sim investimentos. Comprovação disso foi a fala de Kofi Annan, presidente das Nações Unidas, em maio de 2002, em Nova York, na abertura da Sessão Especial da ONU para Crianças, de que fez o encerramento:

Como podemos falhar, especialmente agora que sabemos que cada dólar investido na melhoria das condições das crianças tem um retorno de até 7 dólares para toda a sociedade?

De fato, não são gastos, mas escolhas que precisam ser tomadas e que refletem o conceito de criança, o seu lugar na sociedade e o modo como são vistas pelos governos das nossas cidades.


Mas como está a cidade hoje? Ela é pensada para as crianças? Ou ela continua tendo o adulto como referência e o centro das ações? O adulto precisa trabalhar, locomover-se rapidamente, gerar renda, consumir e uma série de outras prioridades que acabam deixando as crianças invisíveis no processo. Não estou dizendo que não seja importante o trabalho, o transporte público, o acesso aos bens de consumo, etc. A questão é que, nesse movimento todo, precisamos nos perguntar: onde estão as nossas crianças? Em que momento pensamos nelas?


Se, de um lado, temos as crianças das camadas populares nas ruas sujeitas a todo tipo de maus tratos, de outro lado temos as crianças que têm uma condição de vida melhor, cada dia mais “enfiadas” na televisão, jogos online, celulares e assistindo no YouTube todo tipo de “ensinamentos”, muitos dos quais são extremamente duvidosos. Enquanto os pais estão no trabalho, a tecnologia vem ocupar o espaço da família, da escola, das relações, impondo um ritmo frenético de informações e interações que aceleram a mente e depois deixam as crianças impacientes para ouvirem e participarem de uma conversa em casa com os pais, por exemplo. E o mesmo acontece na escola: as crianças já chegam na sala de aula ansiosas, perguntando pelo recreio e pelo término da aula, contando os minutos para voltarem para casa e estarem ao lado do amigo preferido: a tecnologia. A explicação da professora parece devagar demais e também sem tantos atrativos e estímulos visuais de cores e movimentos que encontram nos jogos.


Enquanto os dedos estão cada vez mais ágeis para apertar os botões, a criatividade, curiosidade e emoção vão se distanciando cada vez mais.


Precisamos acordar! A sociedade precisa enxergar as crianças, precisa ver que estão gritando, pedindo ajuda, estão escorrendo pelas nossas mãos. Mas ainda há tempo. Precisamos conversar mais com as nossas crianças, entender o que pensam sobre a vida e o mundo, ouvir sobre seus medos e desejos. Precisamos dar voz a elas, acreditar no potencial de cada uma, sem cobranças, no tempo de cada criança. Por outras palavras, é preciso incluí-las definitivamente em nossas ações.


Qual é a opção da cidade para as crianças? Por que não temos mais áreas verdes em que as crianças possam brincar? Por que não temos mais parques, centros esportivos, incentivo ao lazer? Por que não passam propagandas sobre esse assunto na TV? Por que não temos bibliotecas públicas e brinquedotecas em todos os bairros? Agora estamos na pandemia, alguns irão dizer... Sim, mas e antes da pandemia? E daqui para frente como será? Estaremos fadados a ser comandados pela tecnologia? Precisamos entender que o brincar deve estar na pauta das políticas públicas urbanas. E isto será benéfico para todas as crianças, sem exceção.


Sobre a importância da brincadeira, Tonucci (2020) diz que:

A criança vive na brincadeira experiências raras na vida do homem, como a de confrontar-se com a complexidade do mundo. Ela vive com toda sua curiosidade, com tudo o que sabe e pode fazer, e com tudo o que não sabe e quer saber, na frente do mundo com todos os seus estímulos, suas novidades, seu charme. E brincar significa esculpir um pedaço deste mundo o tempo todo: uma peça que incluirá um amigo, objetos, regras, um espaço para ocupar, um tempo a ser administrado, riscos a tomar e com total liberdade, porque o que você não pode fazer, você pode inventar. Com uma liberdade substancial em relação às restrições e limitações da realidade: o que não existe pode ser imaginado, o que não é possível pode ser inventado (TONUCCI, p. 8, 2020).

Como professora dos anos iniciais do ensino fundamental, aprendo muito com as crianças. Com o retorno presencial e as atividades escolares nas “bolhas” de alunos, cada um recebeu um kit de materiais escolares para uso individual dentro de uma caixa. As crianças ficaram muito felizes com os seus materiais e, ao organizarem os lápis de colorir dentro do estojo, disse a elas para jogarem a embalagem na lixeira. Mais uma vez eu era a adulta "cheia de razão", querendo o controle da situação e dando ordem como se a verdade fosse a minha. Logo fui repreendida pela minha aluna de 6 anos. “Não professora, a caixa é o nosso brinquedo. Eu vou usar como um celular na hora de brincar.” A fala dela foi seguida pelos outros que também não quiseram se desfazer do “brinquedo”. Por essas e outras muitas histórias, afirmo que devemos ouvir mais as crianças e que elas são possuidoras de uma lógica que ultrapassa a razão, que sai do coração, da emoção. E tudo o que nos afeta, nos toca, é carregado de significado e valor.


Quando criança, tive uma infância livre, criada em um terreiro amplo com várias árvores frutíferas. Se alguém quisesse me encontrar, era só procurar em cima das árvores. Eu gostava da vista que tinha lá de cima e da sensação de liberdade. Não brincava na rua, mas o meu quintal era o meu mundo: ali sozinha com a minha imaginação, eu transformava as espigas de milho em bonecas, no milharal do meu avô. Os abacatinhos que caíam no chão e logo se tornavam os animais das minhas histórias, seres que ganhavam pernas de palitos de fósforo. Cantarolava, corria, brincava com a natureza, muitas das vezes com os pés no chão. As flores se transformavam em anéis, enfeites de cabelo e entravam na brincadeira também. Eu fazia até o casamento delas. A imaginação era um terreno fértil, minha “TV” eram as nuvens: eu ficava horas olhando o céu e encontrando formas e cenários, como se lá em cima acontecesse um grande espetáculo... E para mim era assim mesmo. Tenho poucas lembranças da minha infância, mas as que tenho guardo com muito apreço e gratidão, pois essas vivências moldaram um pouco do que sou hoje. Não as vejo como perda de tempo, pois, ao contrário, viver a infância foi uma aventura maravilhosa!


Para Tonucci (2020) “a brincadeira da criança, antes e fora da escola, é compreendida por muitos como perder tempo, mas pode ser entendida como perder-se no tempo, é encontrar-se com o mundo em uma relação emocionante, cheia de mistério, risco, aventura”.


No dia a dia do meu fazer pedagógico, tento ter presente em minhas ações a criança que fui e a infância que tive, para assim conseguir, nem que seja um pouquinho, adentrar no universo infantil não com o meu olhar de adulta, olhar duro e inflexível, mas com os olhos de criança, que vê colorido em todos os lugares. O adulto tem sempre aquela preocupação com as chegadas, sempre enquadrando a aprendizagem em níveis e metas a cumprir e, no entanto, a beleza está justamente no processo desenvolvido, no caminho percorrido, nos passos que antecedem chegar ao destino. Daí a importância de viver plenamente cada momento, daí o valor da experiência vivida vagarosamente, sem preocupações. “Se eu tivesse, disse o pequeno príncipe para si mesmo, 53 minutos para gastar eu iria devagar para uma fonte” (SAINT-EXUPÉRY, 1943). O pequeno príncipe já sabia do valor que devemos dar ao caminhar, ao caminho e não à chegada.


A infância brasileira já passou por muitos conceitos e preconceitos, presenciou algumas conquistas, mas enfrenta desafios que ainda existem e que são muitos. Precisamos não dar as costas para essa realidade, a começar ouvindo nossos pequenos, tendo a simplicidade de admirar o céu ou de brincar com uma caixa vazia de lápis de cor. Precisamos ainda que essa discussão deixe de ser minha e que seja de todos nós, para que as nossas crianças transitem pela cidade como se estivessem no quintal de casa, onde se sintam acolhidas, amadas e possam viver plenamente a infância.


o trecho da música “A cidade ideal”, Chico Buarque contempla esse sonho de ver a cidade tomada pelas crianças e é esse o meu desejo também: vê-las por todos os lados, representadas, ouvidas e, claro, felizes.

“[ ] Mas não, mas não O sonho é meu e eu sonho que Deve ter alamedas verdes A cidade dos meus amores E, quem dera, os moradores E o prefeito e os varredores Fossem somente crianças
Deve ter alamedas verdes A cidade dos meus amores E, quem dera, os moradores E o prefeito e os varredores E os pintores e os vendedores Fossem somente crianças.” (Chico Buarque, 1977)



COMO CITAR ESTE ARTIGO:


TAKAHASHI, Akemi Miqueline. Qual é o lugar das crianças?, em Revista Ponte, v. 1, n. 6, ago. 2021. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/qua-lug-crian.




Akemi Miqueline Takahashi é graduada em Pedagogia, mestranda em Educação e Docência pela FAE/UFMG, onde desenvolve pesquisa na linha "Educação em Museus e Divulgação Científica". É pós-graduada em "Alfabetização e Letramento" pela UFMG, “Ensino de Ciências” pela UFMG, “Mídias em Educação” pela UFSJ, professora do Ensino Fundamental da Prefeitura de Belo Horizonte. É autora do blog "Crianças e Afetação".

E-mail: akemi.takahashi@edu.pbh.gov.br